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Francisco Moita Flores despede-se do pai com sentida homenagem

O antigo inspetor da Polícia Judiciária recorreu esta quarta-feira às redes sociais, para homenagear o seu pai, o “Mestre Chico Flores da Defesa de S. Brás“, que faleceu aos 97 anos.

Francisco Moita Flores revelou que o seu pai “era um homem rijo” que chegou a vencer “o Coronavírus, num último combate. Recuperou, mas a luta deixou-o frágil” e “poucos dias depois desta derradeira vitória“, acabaria por falecer.

O escritor disse adeus ao seu grande herói. “Despedimo-nos em paz. Agradeci-lhe, escorreu-lhe uma lágrima pelo rosto cansado e outra dos meus olhos, apertámos a mão e o último beijo e a última carícia. E nessa noite, quando adormeceu, o Mestre Chico Flores da Defesa de S. Brás, partiu, em sossego, depois de uma vida comprida. E cumprida!“, contou Moita Flores, concluindo: “Veio aconchegar-se na minha memória. De onde nunca mais sairá“.

Leia na íntegra o desabafo de Francisco Moita Flores:

O HOMEM QUE DEVORAVA LIVROS (Epitáfio):
Foi pelos seus olhos que aprendi a amar os livros. E a amar o Mundo, os animais, as pessoas. Pelos seus olhos e pela ternura da minha mãe. Íamos os dois, quinzenalmente, à Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, que estacionava em frente à Igreja de S. João Baptista. Uma fila de esfomeados, putos e graúdos, à espera de alimento.
Era um homem rijo, sem horas para trabalhar, intrépido e insurreto. Não suportava o Regime e, com ele, descobri as emissoras clandestinas, que se diziam em voz sussurrada.
Mostrou-me Eça de Queirós, Florbela Espanca, Camilo, o Padre António Vieira, o seu escritor de estimação. E todos os outros daqui e d’além Mundo. O Hemingway, o Steinbeck, Cervantes e por aí adiante. E também o Teatro. Santareno, Garrett, Shakespeare e o Canto e Castro a fazer de Tristão e Carmen Dolores, de Isolda, no folhetim radiofónico.
Vida dura. Em ebulição. Reparava tratores e ceifeiras. Era a ambulância do Monte da Defesa de S. Brás. Quando alguém adoecia, de noite ou de dia, saltava para o jipe e conduzia quem necessitava ao hospital de Moura.(Nesse tempo havia um hospital)
O Ardila cruza a herdade onde vivíamos. Foi o primeiro rio da minha vida e, hoje que já não corre, engolido pela bacia do Alqueva, continua a escorrer dentro de mim. Ensinou-me a nadar. Pescador afoito, fez-me testemunha de pescarias arrojadas. Barbos, bogas, lúcios, achigãs. E nas grandes caldeiradas junto ao rio com os seus amigos, aprendi o valor da amizade inteira e solidária. Tal como a alegria, quando os tios e os primos vinham de longe para celebrar qualquer festa.
Seguindo os seus conselhos foi fácil equilibrar-me na bicicleta e foi a prenda da minha alegria quando passei nos exames do segundo ano (atual 6º ano) . Era um grande contador de histórias que embeveciam os putos como eu. E lia! Por causa de um livro, que o emocionara, fomos visitar o Palácio da Vila Viçosa. O primeiro Palácio que os meus olhos espantados viram.
Foi com ele que soube existirem livros proibidos. Esses estavam escondidos, encapados com papel pardo. O Aquilino, o Redol, o Soeiro Pereira Gomes, escondidos numas caixas de sapatos. Foi neles que percebi que havia outro mundo para além daquele que nos era ensinado, com fome de justiça e de lonjura. Só mais tarde conheci as cantigas proibidas. Caçador exímio. Pronto a ajudar quem lhe pedia e sempre disposto a ensinar o seu ofício. Foi assim que ficou conhecido por Mestre Chico Flores.
Nunca desistiu. De nenhum desafio, por mais doloroso que fosse. E lia sempre.
Muitos anos depois destes dias de puto, percebia a sua alegria quando lhe oferecia os meus romances ou via as séries que escrevi para as várias televisões. Encantado mas crítico. Afinal, a sua sementeira dera frutos. Os netos tornaram-se na sua maior herança e quando o Alzheimer chegou, o Sénior Care, de Brejos de Azeitão, foi a última grande homenagem ao cuidado, ao carinho que a Directora Graciana e a sua equipa lhe fizeram. Nunca mais vou esquecer estes profissionais da dádiva e do afecto.
Foi uma vida longa de trabalho, de inquietação, de desassossego. E livros..
Ainda venceu o Coronavírus, num último combate. Recuperou, mas a luta deixou-o frágil. Poucos dias depois desta derradeira vitória, a minha ‘irmã’ Graciana telefonou. Chegara a hora de dizer adeus ao meu grande herói. Despedimo-nos em paz. Agradeci-lhe, escorreu-lhe uma lágrima pelo rosto cansado e outra dos meus olhos, apertámos a mão e o último beijo e a última carícia. E nessa noite, quando adormeceu, o Mestre Chico Flores da Defesa de S. Brás, partiu, em sossego, depois de uma vida comprida. E cumprida!
Veio aconchegar-se na minha memória. De onde nunca mais sairá.