Dantas Rodrigues

Advogado

A Festa Brava

Por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados

Com a chegada da Páscoa inicia-se a época das corridas de touros, época também conhecida, entre os aficionados, por Festa Brava, termo ancestral que na zona do Ribatejo significa o mesmo que tourada e que em Espanha é conhecido por «Fiesta» ou «Feria».

A origem da Festa Brava perde-se na memória do tempo. O seu aparecimento na paisagem cultural ibérica é coetâneo do nascimento das cidades, dos primórdios da burguesia e dos respetivos inícios do comércio. Sendo as touradas uma tradição cultural com raízes sociológicas e antropológicas tão profundas parece-me completamente deslocado o constante escárnio e maldizer por que timbram os nossos debates televisivos sobre a matéria, nos quais é sempre mais do que evidente a intenção de extinguir a atividade tauromáquica.

Mandam os novos mantras do pensamento único, entre outros tipos de pensamento contemporâneo, que os países não podem subsistir com uma atividade que vive à custa do sofrimento dos touros. O bordão tem vindo paulatinamente a espalhar-se pelas chamadas redes sociais, muitas vezes na forma de mensagem repugnante. Os sintomas, como não podia deixar de ser, são preocupantes, e nenhum dos nossos governantes eleva a voz em defesa da arte do toureiro e do forcado. Que diferença de Espanha, onde há menos de um ano o Tribunal Constitucional, contraventos e marés, chumbou a proibição de touradas na Catalunha, pretextando que as ditas «são património cultural espanhol». Por aqui, bem ao contrário do país vizinho, com tanta animosidade e discriminação difundida pelas televisões, que não transmitem corridas, mas apenas informações adversas, só se está a fomentar hábitos culturais opostos e, naturalmente, o ódio a quem vive, pratica ou tão-somente gosta do espetáculo tauromáquico.

Hoje os nossos jovens sentem-se pouco orgulhos de viver num país em que a tauromaquia constitui uma tradição cultural. Desconhecem completamente a história do nosso toureio equestre e não o sabem distinguir do toureio a pé, de Espanha, que é iminentemente basco. Os olhos e o pensamento desses jovens centram-se num falso sentimento de compaixão pelo touro, esquecendo, por exemplo, que os muçulmanos, com os quais em nome da voga do multiculturalismo reinante eles são tão solidários, fazem abates «halal», por via dos quais os animais se esvaem em sangue até à morte.

O lento abandono geracional pelas touradas que tem vindo a verificar-se no País constitui, sem dúvida, uma verdadeira cornada de morte na Festa Brava, com culpas repartidas por toureiros, forcados, ganadeiros e apoderados, os quais, bem ao contrário dos seus confrades espanhóis, têm tardado em articular um discurso moderno e a uma voz. Não basta dizer que se gosta dos touros, tem de se saber integrar a Festa Brava no século XXI, respeitando-lhe a tradição, mas não esquecendo questões de bem-estar e de liberdade animal. O touro vive em liberdade. Nos campos, como herbívoro ruminante que é, alimenta-se de pasto e de cereais. O seu ciclo de vida, antes de ser toureado, é de quatro anos. Posto que não se fazem touradas de estoque em Portugal, o animal não morre na praça, mas sim dignamente no matadouro.

O atual regulamento do espetáculo tauromáquico impõe que as praças criem condições para efetuar, após a corrida, o abate em açougue próprio. Os touros, desde que chegam à praça, têm acompanhamento veterinário antes e depois da lide até à morte. A equipa médica verifica inclusive as condições de transporte e alojamento. Se existe animal antes da morte mais acompanhado é o touro de lide. Se queremos continuar a comer carne devemos mudar de atitude e de comportamento. Chegou talvez o tempo de promover a «carne feliz», a carne proveniente de animais em liberdade.

Os animais devem viver em liberdade, «felizes». Os bovinos, os suínos, as aves, são por natureza selvagens e, no passado, eram caçados. Hoje, que o verde está tão na berra, carne ecológica, regional, sustentável, que respeita o meio ambiente, pobre em gorduras, pobre em calorias e rica em proteína, e, obviamente, sem hormonas e antibióticos, etc., etc., o touro bem pode ser apresentado como um exemplo típico desse verde simbolizado por essa «carne feliz».

Numa sociedade pluralista, é sempre inevitável a eclosão de conflitos entre as normas, no caso vertente entre as normas que protegem os animais e as normas que protegem a tauromaquia como parte integrante do património cultural português. Com a colisão entre direitos de igual hierarquia, há que procurar um ponto de equilíbrio para solucionar a querela posta ao Estado. A regra é o método da ponderação de interesses, do equacionamento dos impactos, e procurar sempre alcançar aquele equilíbrio em que a restrição a cada um dos bens jurídicos de estatura constitucional envolvidos seja a menor possível, na medida exata necessária à salvaguarda do bem jurídico contraposto.

Um diálogo despreconceituoso entre os opositores das touradas e os defensores das mesmas poderá enriquecer a nossa cultura em geral e, em especial, não vilipendiar a tauromaquia, cuja ancianidade, por meras questões de educação e respeito, merece bem mais do que opiniões apressadas de quem come bifes sem perguntar donde vêm.