Dantas Rodrigues

Advogado

Tempo de novas famílias

Por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados

Durante tempos imemoriais, entendeu-se por família a resultante do casamento entre um homem e uma mulher. O seu modelo, trinitário, era constituído por pai, mãe e filho(s). Porém, o aparecimento de novas formas de família, quer através da adoção e regulamentação do instituto da união de facto, quer por via da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, veio a alterar completamente tal modelo. Essa alteração comprova que o atual conceito de família se funda na igualdade democrática e plural, não se encontrando necessariamente baseado no matrimónio, o que permite proteger todo e qualquer modelo de vivência afetiva.

A família constrói-se, assim, como estrutura socio-afetiva, onde todos ocupam um lugar/uma função – de pai, de mãe, de filho – sem, no entanto, se encontrarem necessariamente ligados biologicamente.
Para a conceção de um filho já não se torna obrigatório um relacionamento sexual entre duas pessoas de sexo diferente, porquanto a evolução da engenharia genética trouxe a fecundação e a inseminação artificiais. Um casal infértil pode ter um filho mediante a doação de um óvulo que possa vir a ser fecundado em laboratório por esperma também doado. Após um processo de fertilização, o embrião é implantado no útero de outra mulher, que aceita ceder o seu útero para a gestação, designa-se por gestação de substituição, vulgo «barriga de aluguer».

Caberá, pois, perguntar: quando isso acontece, quem serão então os pais? Os que intervieram no processo reprodutivo? Não sendo nada simples, a resposta é proteger as relações estabelecidas entre pai adotivo e filho adotado ou as relações que derivam de inseminação artificial, sendo certo que a filiação biológica não se sobrepõe à filiação afetiva. Cada vez mais, deve a paternidade relacionar-se não só com o ato físico em si mas, principalmente, com um ato de opção. Fala-se aqui, evidentemente, de uma família plural, em que o amor se tornou fluido, instável, e o afeto passou a ser o elemento identificador das relações familiares e parentais.

A multiparentalidade, ou tripla filiação, tem vindo a afirmar-se como a forma mais justa de se reconhecer a paternidade e a maternidade de um filho, que é amado e criado por dois pais ou duas mães, sendo um biológico e outro afetivo, sem que, para tanto, seja necessário excluir-se o outro progenitor biológico.

Assim, não vejo quaisquer motivos para que esta solução não tome lugar no quadro do ordenamento jurídico português. De facto, os princípios do melhor interesse da criança e da solidariedade familiar conduzem a esta minha visão do problema, uma vez que ambos os pais/mães podem exercer os papéis que melhor se coadunem ao desenvolvimento de uma criança. Estão em causa decisões que apenas reconhecem o que efetivamente já faz parte da realidade quotidiana dos filhos que crescem no seio das novas famílias.

Não quero com isto dizer que a multiparentalidade venha substituir algum dos pais biológicos do menor. Bem pelo contrário, ela acrescentará no seu registo de nascimento o pai ou a mãe socioafetivos, sendo por meio deste registo que se estabelece entre o filho e os seus três progenitores os efeitos decorrentes da filiação respeitante a cada um deles.

Apesar de a tripla filiação apenas reconhecer uma relação interpessoal já existente, a realidade é que a relação entre os cônjuges nem sempre perdura no tempo. Por conseguinte, o seu estabelecimento suscita questões que se revelam da maior pertinência, devendo destacar-se a obrigação de prestação de alimentos ao menor e o direito de contacto pessoal com o progenitor não residente.

No nosso ordenamento jurídico, várias são as disposições que regulam a obrigação de prestação de alimentos a menores, tanto no respeitante à sua fixação, como às consequências que advêm do seu incumprimento por parte do progenitor ao qual essa obrigação incumbe. Estando em causa um instituto com um ímpeto tipicamente familiar, e não meramente baseado numa relação biológica, não fará por isso sentido concluir de outra forma que não esta: na tripla filiação, deve o menor poder requerer alimentos de qualquer dos pais, atendendo ao princípio basilar da prossecução do seu melhor interesse.

Em matéria de fixação da residência do menor e do direito de visita, o legislador é explícito quando prevê que a criança tem o direito de estabelecer, reatar ou manter uma relação direta e contínua com o progenitor ao qual não foi confiada, devendo esse direito ser exercido no interesse dessa mesma criança, verdadeira beneficiária desse direito de visita, incumbindo ao progenitor residente as obrigações de não interferir nas relações do filho com o progenitor não residente e de facilitar, ativamente, o direito de contacto e de relacionamento prolongado. Quanto ao progenitor não residente, cabe-lhe o dever de se relacionar pessoal e presencialmente com o filho. E realce-se que nesta organização do tempo da criança, também as relações com os avós e outros membros da família se afiguram de fulcral importância para o seu equilíbrio presente e futuro, uma vez que só assim se torna possível preservar o seu património familiar, genético e espiritual.

Ao defender ser esta a ratio da fixação do direito de visita do menor ao seu progenitor não residente, a solução não pode todavia ser diferente, mesmo quando o que estiver em causa seja um caso de tripla filiação. Assim, independentemente de com quem ficará a guarda do menor, que, adianta-se, deverá poder ser requerida por qualquer dos pais constantes da certidão, os demais envolvidos possuem o direito-dever de o visitar. Isto dito, importa concluir que, apesar de já termos consagrado um vasto complexo de normas reguladoras do poder familiar, nomeadamente dos direitos e deveres/funções dos progenitores em relação aos filhos, ainda falta ao ordenamento jurídico português evoluir significativamente no que concerne a previsão do afeto no seio das relações familiares. Inegável é, portanto, o contributo possibilitado pelo instituto da tripla filiação em matéria de direito da família. Será, pois, de aguardar e de exigir também o reconhecimento do direito da parentalidade socioafetiva neste nosso tempo de novas famílias.