Dantas Rodrigues

Advogado

Uma indignidade

Quando um país da Europa, da velha Europa, do mesmo continente que aboliu a escravatura e a pena de morte, é condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) isso significa que a proteção dos direitos e liberdades fundamentais de um determinado homem ou de uma determinada mulher não está a ser devidamente observada nesse país. A conclusão é por demais óbvia, mas já não o será tanto assim quando esse país dá pelo nome de Portugal e a ele está secularmente ligado ao respeito pela pessoa humana, princípio de todo o estado democrático de direito.

Inaceitável para a justiça portuguesa ser chamada à pedra pela mais alta instância jurisdicional europeia (com foro sobre 800 milhões de cidadãos europeus), pelo facto de um tribunal criminal não haver respeitado os mais elementares direitos de defesa de um cidadão estrangeiro.

Na base do sucedido, está a notificação do despacho de acusação redigido em português a um cidadão ucraniano. Caberá desde já perguntar porquê? Sabendo o magistrado do Ministério Público que formula a acusação e o juiz de direito que aprecia o mérito da causa que todo e qualquer estrangeiro tem direito a receber os atos processuais que lhe dizem respeito na sua língua. Não que isso seja um luxo, como é evidente, mas apenas pela simples razão de que ninguém, por mais e melhor que domine um idioma, se encontra na posse de conhecimentos que lhe permitam interpretar as mais subtis nuances desse idioma, com todo o seu cortejo de frases idiomáticas, figuras de sintaxe, figuras de pensamento, tropos, em suma, figuras de estilo, em que a linguagem do Direito costuma ser pródiga. Convenhamos que é pedir demasiado a um estrangeiro, seja ele trolha, cabeleireiro ou leitor numa doutíssima universidade, que decifre jargões profissionais, quando muitos deles só falam de ouvido.

Para o acusado, o caso não é para encarar com ligeireza, porquanto se trata de um despacho que o submete a julgamento pela prática de um crime podendo, eventualmente, vir a ser-lhe imposta uma pena de prisão. A relevância é tal, que a lei manda descrever os factos, o lugar, o tempo, a motivação e o grau de participação na prática do ilícito.

Perante a ignorância das obrigações do tribunal português, o cidadão ucraniano acusado e condenado, apelou naturalmente para Estrasburgo e ali a sua voz foi ouvida. Isso, porém, não significou que os ecos da mesma tenham chegado a Portugal, já que, embora exista decisão favorável do TEDH desde 22 de Julho de 2008, o Estado português ainda nem sequer se preocupou em cumprir a decisão, arrastando-a, como é de resto seu hábito, por meras questões processuais e outros rodriguinhos de duvidoso interesse jurídico.
A imagem que projetamos para o exterior é péssima, fomenta a instabilidade e o desconforto nos cidadãos estrangeiros. Então, pergunto, nos dias de hoje, passará pela cabeça de algum português que se encontre num país do qual não conhece a língua ter de se defender de um libelo acusatório que não consegue ler e, por conseguinte, compreender?

Talvez como em nenhuma outra época, a imagem de um país tenha residido tanto na justiça como agora, sem incutir confiança em quem o procura, seja para trabalhar, seja para investir, seja por mero lazer, continuaremos, tal como a divida pública, a crescer, mas a crescer de indignação.