Off the record

Celeste Rodrigues: “O segredo é estar agarrada à vida”

Aos 95 anos, dispensa apresentações quer pelo percurso em nome próprio como por ser irmã daquela que será para sempre a mais carismática fadista portuguesa, Amália Rodrigues. Chama-se Celeste Rodrigues é também uma das vozes mais reconhecidas do Fado e celebra 73 anos de carreira. E esse foi o mote para que a ‘Move Notícias’ fosse ao encontro da ‘Diva Portuguesa’ no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, que servirá de cenário de um concerto-homenagem no próximo dia 11 de maio. Entre uma chávena de chá e uma fatia de bolo, falou-se um pouco de tudo, da música às viagens, da velhice ao espetáculo que vem aí, ficando de fora os encontros com Madonna, assunto de que se recusa falar. Mas, lá conta que esteve em Nova Iorque, não só na badalada festa de passagem de ano em casa da rainha da Pop, mas também a 8 de abril para atuar, sem tempo para passeios pois não é “rica para isso”. Bem vivida, Celeste nasceu no Fundão, na Beira Baixa, mas foi em Lisboa que se fez mulher e artista e é nela também que será homenageada por um trabalho notável na cultura nacional.

Move Notícias: O que é nos pode adiantar sobre o seu concerto aqui no Teatro Tivoli BBVA já no próximo dia 11 de maio?
CR– Celeste Rodrigues: Não o vejo como um concerto. É mais um encontro de amigos no palco e espero que também na plateia. Tenho mais de 70 anos de carreira e tenho 95 anos. Devo ser caso único [risos]. Acho que não há ninguém a cantar aos 95 anos, não é?

MN: E qual é o segredo para cantar aos 95 anos?
CR – O segredo? O segredo é estar agarrada à vida. Agarrar a vida e não se enervar, é não ser exigente. É gostar sobretudo de viver, é uma forma de estar agarrado à vida.

MN: A vida é feita de surpresas. A Celeste tem alguma preparada para este concerto comemorativo?
CR – Claro! Tenho convidados. Vou ter vários fadistas.: Kátia Guerreiro, Jorge Fernando, Hélder Moutinho, Duarte Coxo, Teresinha Landeiro e Gaspar Varela que é meu bisneto.

MN: Vai ser um especial ainda mais especial por partilhar o palco não só com essa “elite” do Fado, mas sobretudo por estar ao lado do seu bisneto?
CR – Claro que é. Ele toca por minha causa [risos]. Foi para me acompanhar que ele quis aprender a tocar guitarra. Um dia, disse-me assim, antes de eu ir de viagem para sítio qualquer: “Avó eu espero por ti enquanto estiveres de viagem, mas eu vou aprender a tocar guitarra e tocar contigo”. Ele aprendeu em poucos meses e toca lindamente. Gosta tanto de Fado quanto eu. Tem apenas 14 anos e sabe os Fados de toda a gente e até canta. Canta mal, mas vamos dizer isto baixinho para ele não ouvir… shiu… ele não canta lá muito bem. Eu digo-lhe que é porque está a mudar a voz. Mas ele é fantástico. Ele adora a guitarra. Por vontade dele, ia aos Fados todas as noites.

MN: Há muito orgulho neste bisneto?
CR – Não é bem orgulho. É contentamento. É um prazer enorme. Orgulho? Eu acho que nem sei o que é isso! Nunca tive orgulho de nada! Tenho sim contentamentos fantásticos… Ainda por cima, sendo eu a causadora de ele estar a tocar…

MN: Foi então uma passagem de testemunho de bisavó para bisneto?
CR – [Risos]. Sim, é. Acho que sim… [risos]

MN: E o que é que vai ser cantado e tocado por vocês?
CR – Sei lá! Nem sei o que os meus convidados vão cantar e tocar. Comigo é assim, cada um canta o que quer, o que lhe apetecer. Eu canto as minhas músicas e já chega. Tenho muitas, não é? De repente, há uma que eu sei, talvez cante. Mas não me vou adiantar, depois você ainda me cobra se não cantar [risos]. Assim, dou uma surpresa.

MN: A Celeste é, então, uma mulher de improvisos?
CR – Claro que sou e por várias razões. A minha voz, por exemplo, às vezes já não vai ao agudo. Outras vezes não me apetece fazer como sempre fiz e vou por outro “lado”. Outras vezes, nem ligo nenhuma ao compasso e vou para “zonas” que até nem devo ir, mas apetece-me.

MN: Vai ter em palco uma nova geração do Fado. Há algum fadista que a Celeste goste particularmente?
CR – Não, tenho muitos. Eu gosto daqueles que são autênticos, que não imitam ninguém, que têm a sua maneira de cantar. Eu gosto desses. Também gosto dos outros, os que gostam de Fado, há alguns que não cantam tão bem. Não digo nomes [risos].

MN: Há quem diga que a Raquel Tavares, por exemplo, herdou o Fado tradicional…
CR – [Risos] Já ninguém herda Fado, por amor de Deus. Ela canta Fado, o tradicional e outro qualquer. Ela é fiel ao Fado, tal como a Ana Moura, que canta tudo. A Ana tem é uma voz grave, mas não a impede de cantar fados tradicionais. Aliás ela até os canta, e canta-os bem, e de forma muito bonita. Eu acredito que toda a gente, todos os fadistas cantam sempre fados tradicionais.

MN: A Celeste não concorda então com os mais puristas que dizem que o único Fado é o tradicional, o mais antigo…
CR – Isto do Fado tradicional… eu não percebo bem. Mas qual é exigência de as pessoas acharem que o Fado tradicional é que é o verdadeiro Fado? Todas as músicas que tenham a mesma métrica, o mesmo sentimento, é Fado! O ‘Ai Mouraria’ é Fado. O ‘Sabe-se lá’ é Fado. ‘Nem às paredes confesso’ é Fado. Tudo isto é Fado. É um Fado de melodia larga, que já tem música escrita. Os outros não têm. Nós improvisamos o estilo, daí eu cantar de uma maneira e outro fadista cantar de maneira totalmente diferente.

MN: Em 73 anos de carreira já passou por várias fases do Fado. Quais foram os momentos mais importantes e aqueles que não consegue esquecer?
CR – Todos, todos, todos. Foram todos bons e importantes. Acho que não tive um momento mau, pelo menos a cantar. Nunca me esqueci de uma letra. Agradei sempre ao meu público. Estava quase sempre a cantar, como não poderiam não ser bons e importantes?

MN: Depois deste concerto, tem previsto algum trabalho?
CR – Comecei a gravar. Gravei até duas canções para um disco. Mas agora com a Internet e essas coisas todas de música, acho que já não vale a pena fazer discos. As pessoas já têm as nossas músicas na Internet e ouvem-nas lá.

MN: Mas equaciona não gravar mais músicas…
CR – Penso sempre em gravar. A gente nunca diz nunca, muito menos quando se é fadista. No Fado não se diz: “Não faço isso mais!”. Bem, a não ser uma fífia [tom ou nota desafinada de voz ou de instrumento] [risos].

MN: Qual é o seu maior prazer na vida, para além do Fado e o cantar?
CR – Conversar com os amigos, como estou aqui a conversar consigo. Acho que é bom estar em contacto com amigos. A amizade é uma coisa muito bonita, sabe? Eu, felizmente, tenho muitos. Gosto de sair, gosto de passear, gosto de viajar e ver as diferenças nas outras culturas.

MN: Ainda viaja em turismo?
CR – Se ainda viajo? Claro que sim! Ainda há pouco tempo estive em Nova Iorque e não foi só na Passagem do Ano, foi no passado dia 8 de abril a dar um concerto. Em Nova Iorque fiz pouco turismo, não sou rica para isso. Tenho ido com contratos e por isso nunca poderia viajar turisticamente e tirar uns diazinhos para ver Nova Iorque, não chega para nada. E eu gosto de ver tudo, mesmo agora que mal posso andar.

MN: A Celeste está ótima…
CR – Sim, mas comparado com o que eu andava… é que até os meus filhos me pediam para andar mais devagarinho. Eu não sei andar devagar, eu andava sempre com pressa. Era cá uma andarilha. Eu só queria chegar depressa aos sítios.

MN: O que é que lhe falta fazer na vida?
CR – Acho que ainda me falta fazer muita coisa na minha vida. Os 100? Bem, mas há tanta coisa que eu também já fiz a mais. Mas espero ter mais anos para fazer mais. Olhe, o que me falta fazer é mais anos. Quero viver mais.

MN: São 95 anos muito jovens…
CR – É como eu lhe disse… Gosto de viver e conviver e isso ajuda. Imagine só uma pessoa que está em casa e não sai, fica sentada no sofá… A cabeça não funciona, deixa de funcionar. A minha funciona muito bem porque eu não aceito ficar em casa. Eu começo logo a olhar para as paredes. Vou logo embora para rua. A casa é um jazigo em vida.

MN: Como é que a sua rotina?
CR – Tenho que sair de casa todos os dias. Tenho que me pentear, tenho que me vestir de maneira diferente. Quem é que não gosta de estar arranjado? Eu sou muito vaidosa e ainda tenho a minha vaidade dentro de mim. Às vezes, já não consigo chegar lá. Mas eu gosto acima de tudo de me sentir bem. Até lhe conto, não é que a roupa nos faça diferentes, mas gosto de andar às compras, de andar à procura, mesmo até que não compre nada. Gosto muito de bisbilhotar o que há de novo. Eu gosto disto, do novo, gosto de viver. Ainda tenho muito que viver. E isto para dizer que depois vou para o café, que até é conhecido como o “Café da Celeste”. Às vezes, fico ali na conversa umas cinco horas.

MN: Cinco horas?
CR – Numa esplanada! Com gente sempre a passar! Ali toda a gente me conhece e vêm falar comigo e isso é agradável. Isto é uma forma também de estar com pessoas, umas amigas, outras conhecidas. Fazemos logo amizades novas também, como esta minha e sua.

Fotos: César Lomba

Texto: João Monteiro de Matos editado por Maria João Pinheiro