Dantas Rodrigues

Advogado

São Miguel Arcanjo fulminado

Por Dantas Rodrigues, socio-partner da Dantas Rodrigues e Associados

A selfie, termo que na gíria das redes sociais quer dizer fotografia tirada pelo próprio, bem se pode dizer que constitui uma nova praga dos tempos que vão correndo. Mais uma! Nas ruas, nos cafés, nas lojas, nos transportes públicos, enfim, por toda a parte, é-se importunado por gente que não consegue estar quieta um só minuto. E quando essa gente, por quaisquer razões cósmicas que me escapam, não se movimenta, digita freneticamente os teclados dos seus telemóveis «inteligentes» ou amplifica imoderadamente os decibéis do seu som ambulante sem sequer se preocupar com quem se encontra por perto.

O fenómeno, de tão alarmante que é, tem merecido a devida atenção por parte dos grandes especialistas internacionais em matéria de comportamentos humanos, mas, na realidade, a verdadeira causa do problema radica na educação ou falta dela. Exagero? Não creio! E prova de que não creio, formulo a seguinte pergunta, não precisando sequer de sair das nossas fronteiras: quem é que, na posse de um módico de compostura, civismo e educação trepa, qual primata em estado de euforia, a um monumento para fazer uma selfie ou o que quer que seja?

Para quem já se não recorda do que estou a perguntar esclareço que, em Maio do ano corrente, um individuo de 24 anos, português, trepou a um nicho da fachada da Estação do Rossio, para fazer fotografias, acabando por derrubar e destruir a estátua de D. Sebastião que ali se encontrava. E para cúmulo do azar, o indivíduo não ficou debaixo da dita estátua! Ora se isto não revela falta de civismo, compostura e educação, então o que revela?

É evidente que as faltas enumeradas não constituem unicamente apanágio indígena. Longe disso! Trata-se de um mal transversal ao próprio mundo contemporâneo e cujo remédio parece não ter solução à vista. Poderia trazer aqui vários exemplos semelhantes ocorridos além-fronteiras, mas fico por cá, lembrando o que recentemente se passou com um turista brasileiro naquele que é considerado o nosso primeiro museu, o Museu de Arte Antiga.

Com efeito, o caso ocorreu num domingo, e prendeu-se com o derrube de uma imagem setecentista de São Miguel Arcanjo, o qual, tal como o pobre «Desejado» ou «Adormecido», segundo os gostos, foi vítima de uma selfie que o estatelou no chão, partindo-o em vários bocados. Mais uma vez, e infelizmente, o fautor do desacato patrimonial escapou ileso. A fotografia do famoso príncipe da milícia celeste tombado por terra não tardou a correr mundo acompanhada do seguinte comentário: «Eis o preço das entradas gratuitas nos museus no primeiro domingo de cada mês.»

Como não podia deixar de ser, as desculpas para o sucedido não se fizeram esperar e, como sempre, no mesmo tom, ou seja, a culpa é do outro, no caso vertente, da tutela ministerial do museu. Não duvido de que haja falta de vigilantes (apenas 20, é o que se diz), mas também não duvido um só minuto de que nem com um exército alguma vez se conseguirá evitar a praga personificada pela tal gente sem civismo, compostura e educação. Por consequência, torna-se claro que, para mim, o derrube da imagem de São Miguel Arcanjo não se ficou a dever a qualquer falta de pessoal.

O mesmo, todavia, já não direi da incúria (para não lhe chamar amadorismo) que ressalta da fotografia da imagem no chão, e a qual suscita, a quem souber ver, duas perguntas muito simples e que deixo no ar.

Eis a primeira: numa sala por onde circula tanta gente, como é que não se viu que expor o que quer que fosse no meio, não só estorvava como seria susceptível de provocar acidentes? Quanto à segunda direi: num museu que se ufana de ser o mais importante de Portugal, como é que foi possível expor uma peça sobre um plinto tão estreito e, ainda por cima, sem o cercar das tão necessárias quanto dissuasoras baias?

Chamo atenção para um pormenor de somenos, mas que é useiro e vezeiro entre nós. Quando se consulta a página do Museu Nacional de Arte Antiga, deparamo-nos, para além do director e do director-adjunto, com uma lista infindável de curadores, a maior parte dos quais de duvidosa utilidade cultural, porque de nada curam. Quem não conhecer a nossa triste realidade, pensará certamente que Portugal é um país recheado de generosos e bem apetrechados intelectuais, e nem por um só segundo acreditará que afinal é apenas de ar que se trata.

Se me engano, poucas ocasiões mais terão os tais curadores para provar a sua competência, pois, caso contrário, nem o escudo protector de São Miguel Arcanjo conseguirá livrar-nos das selfies deste mundo com que temos de viver.