Dantas Rodrigues

Advogado

Chamar os pais à realidade

«Estamos muito orgulhosos do nosso filho!» É assim que muitos pais dizem e sentem após o seu filho ou filha, ainda que de muita tenra idade, terem participado num desfile de moda, num anúncio televisivo ou numa telenovela.

Na esmagadora maioria dos casos, há pais que sonharam ter feito vida sob a luz cegante dos holofotes e que, por este ou por aquele motivo, o destino lhes não consentiu essa tão almejada vida, frustrando, desse modo, as suas mais belas expetativas. O resultado, sobretudo para os menos conformados com os altos desígnios da Providência, não é difícil de imaginar: transferem para os filhos as suas frustrações, muitas vezes obrigando-os a correr atrás dos sonhos que eles, pais, não conseguiram realizar. E nessa corrida, mesmo que se vislumbre algum sucesso, haverá pais que, com a pressa que sempre os anima, não conseguem perceber que uma criança, sujeita a ensaios regulares e normalmente extenuantes, acaba por perder o convívio familiar, desinteressa-se pela escola e perde a
vontade de brincar. Em suma, torna-se adulta antes de tempo.

Em termos de sociedade, o trabalho infantil dito artístico é visto como absolutamente normal, associado ao sucesso, às lantejoulas e à fama, razão principal por que ninguém se importa que essas crianças trabalhem da mesma maneira que os adultos e, às vezes, até mais, se nos lembrarmos que os ensaios são, regra geral, depois das aulas e das milhentas atividades pós-escolares a que são sujeitas no seu dia-a-dia. Porém, se uma criança, em vez de trabalhar nesse dito meio artístico, trabalhar nas indústrias do calçado ou do vestuário, não faltará quem condene publicamente uma tal exploração e defenda as consequentes ações inspetivas da Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT), mais as respetivas sanções que ela costuma aplicar sobre os empregadores.

Sem pretender aqui fazer comparações entre um «plateau» ou uma «passerelle» e uma fábrica de bolas de futebol na Índia, há que dizer, com muita clareza, que o trabalho efetuado por crianças deve merecer uma especial proteção, quer em virtude da sua debilidade física e psíquica, quer por razões de ordem moral, formativa e cultural, além do objetivo último de tutela do livre desenvolvimento da personalidade de um ser que se encontra em crescimento e formação.

A necessidade de memorização de textos, longas jornadas de ensaios e de provas de roupa e de calçado, assim como constantes deslocações na cidade, quando não mesmo de viagens pelo País, fazem com que o tempo a dedicar por uma criança aos estudos seja insuficiente ou mesmo nulo. Por conseguinte, trabalhar em tarefas erroneamente consideradas leves e socialmente aceitáveis, pode ser gerador de danos sociais e psicológicos importantes, que o «glamour» esconde a troco de efémeros aplausos.

O exemplo de Mozart
A regulamentação da participação de menores nas áreas do espetáculo pelo legislador português manteve-se durante largos decénios num regime de quase inexistência jurídica, tendo apenas verdadeiramente aparecido em 2004, com a transposição da Diretiva n.º 94/33/CE na RCT2004.

O direito à especial proteção do trabalho dos menores vem regulado, internamente, no art.º 3.º da Lei Preambular do Código do Trabalho (LPCT), nos art.os 66.º a 83.º do Código do Trabalho, nos art.os 2.º a 11.º da Regulamentação do Código do Trabalho (Lei n.º 105/2009, de 14 de Setembro ou RCT) e nos art.os 61.º a 72.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro. É este o conjunto de normas que visa salvaguardar a posição jurídica do menor, proteger a sua saúde física e psíquica, o seu desenvolvimento, segurança, educação e formação.

Com a Lei n.º 105/2009 denota-se, assim, uma viragem nas preocupações do legislador. Se na regulamentação anterior as preocupações do legislador se limitavam ao estabelecimento de idade mínima para a participação dos menores e qual a forma e procedimentos necessários à celebração dos contratos, a partir da entrada em vigor daquele diploma, o legislador passa a regulamentar, entre outras, matérias como os limites máximos dos períodos normais de trabalho diário e a necessidade de aproveitamento escolar.
Se é verdade que nem sempre a participação de menores em espetáculos culturais, artísticos, desportivos ou publicitários se tem por incluída na problemática do trabalho infantil, também não é menos verdade que a participação desses mesmos menores em atividades do mundo do espetáculo, moda e publicidade poderá integrar o conceito de trabalho infantil, sobretudo a partir do momento em que essa mesma participação for exercida (como o é sempre, aliás) em condições e ritmos de trabalho tais que passe a constituir um fator de prejuízo no desenvolvimento e na proteção dos direitos e garantias fundamentais da criança ou do jovem.

Chegados aqui, perguntar-se-á: e, então, Mozart, não fez ele outra coisa que não trabalho infantil? A resposta é difícil, porque se trata de um génio, para mais filho de um pai que, embora não fosse genial, era um prestigiadíssimo violinista, compositor e tratadista ao serviço da corte arcebispal de Salzburg. Excelente professor, ensinou com tal proficiência o pequeno Mozart e a irmã, Maria Anna, que ainda não tinham eles cinco anos de idade e já ambos se davam a ouvir, com enorme surpresa, nas principais cortes europeias do tempo. Isso fez, naturalmente, com que o pai alcançasse consideráveis proventos financeiros. Evidentemente que os tempos eram outros e as mentalidades também, não havendo, por isso, termos de comparação sérios.

Ao falar-se de trabalho infantil dito artístico (ou mesmo Artístico) se percebe logo que estamos perante um tema que divide opiniões, mas a verdade é que os génios são de tal modo estranhos e raros que o mais importante, para que não haja mais tarde frustrações, será talvez começar por chamar os pais à realidade.

**Por Dantas Rodrigues, advogado, sócio-partner na Dantas Rodrigues & Associados